terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Caminho

A violência vem de formas diferentes. Depende de cada relação, de cada situação, do momento da sua vida em que acontece. Eu não sei dizer quando a violência começou na minha vida e não sei dizer se um dia vai ter fim. Existem várias formas de destruir uma pessoa e eu conheci cada uma delas.
"Eu sou a única pessoa que se importa com você no mundo" "Você é uma péssima pessoa e eu entendo todos que te fizeram mal" "Eu não sei como alguém consegue te suportar" "Você é um demônio"
Essas são histórias que me consomem. São histórias que assustam até os psicólogos e psiquiatras pelos quais passei. São aquelas histórias em que você não consegue nem se imaginar na pele da pessoa porque parece tão horrível observando de fora que você apenas que abraçar quem passou por aquilo e dizer 'vai ficar tudo bem'.
Eu disse que ia morar com a minha mãe pois não aguentava a minha madrasta com pirraça pra chamar a atenção. Meu pai tomou meu celular e quebrou o que tinha no quarto pois sabia que eu chamaria a polícia - nós já tínhamos passado por aquilo. Nesse dia ele estourou um chinelo nas minhas costas de tanto me bater e eu torci o tornozelo tentando fugir pela janela pra pedir socorro.
Nunca fica. Eu tento muito ser forte e continuar minha vida, estudo e trabalho e faço trabalho voluntário e tento e tento. Até o momento em que um dos protagonistas da história diz algo apenas pelo simples prazer de me foder. Pelo simples prazer de me ver destruída, como sempre fizeram. E então eu volto à estaca zero.
Uma vez uma tia pegou as minhas coisas porque meu pai ameaçou incendiá-las. Eu liguei dizendo que não precisava. "Você é um demônio menina! Você merece se foder muito nessa vida e morrer sozinha, isso sim! Eu te odeio!" foi a resposta.
Meus pais nutrem um ódio mútuo e encontraram uma forma de descarregar isso: em mim. Eu apanhei muito nessa vida. Com todos os objetos possíveis e com todas as sequelas possíveis. Eu fui muito xingada, de todos os nomes e palavras horríveis que existem. 
Depois de 2h de surra, eu caí no chão e minha mãe gritava "Vira o rosto pois eu vou deixar marcas na sua cara"enquanto chutava meu estômago. O estelionatário que era o namorado na época disse "Ou eu, ou ela" e depois que ela se cansou de me bater eu entrei soluçando no carro do meu pai.
Mas tudo bem porque todas as crianças levadas apanham né? Acontece que eu nunca fui levada. Eu era aluna nota 10, conhecida pela diretora por ser um exemplo, loira, nunca saía de casa. Fazia natação, apendi a falar inglês, comecei a trabalhar com 15 anos e até hoje não parei. Nunca pedi presentes caros, nunca usei drogas e nunca tive que pedir socorro pois bebi demais na rua de madrugada.
"Mas você sabe por que ela é assim né? Ela é perfeccionista e só tira notas boas pra tentar chamar a atenção dos pais, que nunca ligaram pra ela", tia para ex-namorado.
Tem muitas coisas que eu não lembro, muitas noites em que ainda é difícil dormir pois tenho pesadelos. "Os pesadelos são a forma do seu subconsciente liberar os traumas que estão guardados de uma forma mais leve, que você possa aguentar", psicóloga. Eu não aguento e choro e grito e me mexo em desespero. Eu não sei se doeu mais na hora ou se dói mais agora, eu só sei que dói.
"Sonhar que seus pais brigam com você e você tenta acertá-los mas não consegue é porque nada vai atingí-los. Além do fato de que quando você era criança, ninguém estava lá pra te ajudar.", psicóloga.
Meu primeiro namoro foi com uma mulher. Uma psicopata, possessiva, transexual com um tumor no cérebro e que controlava cada passo meu. Eu sustentava uma casa que ela quis e discutíamos todas as noites em que eu voltava da faculdade, sobre eu não ter ido pra faculdade e sim à um motel com alguém. Isso nunca aconteceu. 
Eu tentei ajudá-la e jurava que aquilo era amor. Jurei nas vezes em que ela me disse que eu estava gorda, nas vezes em que ela me proibiu de usar tais roupas, nas vezes em que me chamou de vagabunda por cumprimentar um amigo na rua, nas vezes em que disse que ela era a única pessoa que estava interessada em mim. Jurei nas vezes em que ela me jogou de um canto ao outro do quarto, nas vezes em que me segurou pelos pulsos, nas vezes em que me chutou tão forte a ponto de estourar veias da minha perna ou torcer meu tornozelo.
Ela saiu correndo da casa e minha mãe estava na cozinha. Chegando na garagem, me pressionou contra a parede, bati minha cabeça e disse 'Me deixa, eu vou embora!'. Minha mãe viu e gritou 'Parem vocês duas!'. Eu fiquei paralisada. Quando minha mãe chegou até nós, nos separou, se virou pra mim e disse 'Você para com isso! Para de transformar a vida dos outros em um inferno!'
Até hoje ela participa dos almoços de família que minha mãe faz. Ela usa o nome social que nós escolhemos juntas, quando ela me contou da sua sexualidade. Segundo elas, eu fui a culpada da tentativa de suicídio dela. E eu sou crucificada até hoje por tê-la abandonado quando teve que fazer a cirurgia pra poder voltar a andar depois desse "acidente".
Depois disso eu engatei um relacionamento onde eu sempre estava errada ou louca. Onde eu era ridícula por não querer fumar maconha numa quarta-feira às 4h da manhã. Onde eu estava errada, qualquer fosse minha posição. Onde eu nunca me senti bonita ou querida.
"Eu não acredito em você! Você é completamente louca! As pessoas te odeiam com razão, não é possível que só você não vê! Eu sou a única pessoa que se importa com você."
Eu me pergunto quantas pessoas tiveram que passar por coisas ruins e quantas conseguiram sair desse ciclo. Eu me pergunto porque não sei se um dia serei capaz de sair disso. A maior parte da minha vida eu ouvi que era um pedaço de lixo que não servia pra nada. A maior parte da minha vida eu fui rejeitada, espancada, xingada, abusada e principalmente, fragilizada. 
Hoje eu me sinto forte, mas eu tenho apoio. Hoje eu me sinto amada, bonita, segura, mas não é como se eu me sentisse merecedora disso. Essa é a outra parte da história. Hoje é um dia bom. Mas há dias em que eu não saio da cama, não tomo banho, não trabalho, não estudo, não como. Há dias em que parece que estou num revival de todas as coisas ruins que aconteceram e nada me tira disso.
Eu torço pelos dias bons. Eu luto por eles. Eu sonho com eles. 
Eles são o caminho pra uma vida onde eu não tenha que lutar com fantasmas do meu passado pra poder ser eu mesma.